A vida é assim, feita de escolhas e renúncias. Cada
escolha implica uma renúncia. Bom é quando se pode resgatar um bem perdido lá
no passado, guardado num Baú de Trocas.
BAÚS DE TROCAS
Era uma vez…uma
jovem.
Sem pais, irmãos, outros parentes, foi acolhida pela madrinha. Essa senhora não
era propriamente má, simplesmente, pouco se importava com a jovem. Era-lhe
indiferente o que a moça pensava, sonhava, sofria. Para compensar o teto e o
pão, exigia que a afilhada fizesse todo o serviço doméstico. Apesar disso, moça
sentia-se grata – encontrara um lar.
A jovem
levantava-se antes do sol nascer e começava a lida. À tardinha, depois de todo
o serviço pronto, cumpria a tarefa que lhe era, até, muito agradável – buscar
água numa fonte, mais ou menos meia hora de caminhada. No quintal da casa havia
um poço, mas, para beber, a madrinha exigia a água daquela fonte.
Pelo caminho,
sentia o cheiro das flores, ouvia o canto dos pássaros, colhia e comia frutas
silvestres. Na fonte, aproveitava para soltar, lavar e pentear seus longos
cabelos, sempre presos debaixo de um lenço.
Algumas vezes, a
moça viu, ali nas redondezas da fonte, uma velha bem parecida com uma bruxa,
isto é, como lhe diziam ser as bruxas. Ela não lhe metia medo, acostumara-se à
sua presença. A velha apanhava ervas e, ao se aproximar, cumprimentava-a com um
sorriso maroto.
Um dia, a jovem
pisou numa pedra escorregadia, levou um tombo e o pote, já cheio de água, foi
ao chão. Quebrou-se em mil pedaços. Desesperada, pensava no desgosto
da madrinha. Sabia do seu apego àquela vasilha, herança da falecida mãe.
Ao ver as lágrimas
da moça, a tal velha se aproximou:
- Eu tenho um pote
idêntico. O que você me daria em troca?
- Moro de favor em
casa de minha madrinha, nada tenho de meu.
- Tem sim, você
tem lindos cabelos encaracolados. Eu lhe dou o pote em troca deles.
A moça aceitou e
deixou que a velha os cortasse.
Perguntou:
- O que a senhora vai fazer com meus cabelos?
- Vou guardá-los
nesse baú. Se algum dia, os quiser de volta é só me trazer o pote e desfazer a
permuta. Eu moro numa casa depois da volta do rio.
A madrinha nem
percebeu que o pote era outro e nem que a moça estava careca.
Passado algum
tempo, falta de sorte, o novo pote escapuliu-lhe das mãos e também partiu-se em
muitos pedaços. A velha, sempre por perto, falou:
- Na minha casa
existe outro pote.
- Mas nada tenho
para lhe dar em troca.
- Tem sim, tem um
sorriso lindo, com dentes alvos como a neve. Dê-me os dentes e eu lhe darei o
outro pote.
A moça deu-os de
bom grado. Preferia perdê-los a decepcionar sua benfeitora.
Viu quando a velha
os guardou numa caixinha igual à outra, dizendo:
- Quando quiser
destrocar, já sabe.
A madrinha não
percebeu que a moça estava sem os dentes, nem que deixara de sorrir.
A rotina
continuou. A moça, como sempre, todas as tardes ia buscar água na fonte. Pelo
caminho não mais se alegrava quando via as flores e os pássaros, nem comia os
frutos silvestres. Na fonte, já não tinha cabelos para lavar e pentear.
Sua infelicidade
parecia não ter fim: deixou cair e quebrar o terceiro pote.
Como se estivesse
esperando pelo fato, a bruxa logo se fez presente:
- Ainda tenho
outro pote. Igualzinho.
- Mas o que eu
poderia lhe dar?
- O brilho de seus
olhos.
E a moça deixou
que a velha tirasse umas películas que envolviam seus lindos olhos azuis e viu
quando a mulher as guardou noutra caixinha.
Como das outras
vezes a madrinha não percebeu nem que o pote era outro e nem que a moça
enxergava mal.
O tempo foi passando.
A madrinha, bem idosa, adoeceu e morreu.
A moça ficou
desolada. Chorou muito. Que seria dela?
Passou bastante
tempo sem saber o que fazer.
Um dia, ao pegar o
pote para buscar água na fonte ocorreu-lhe não precisar mais realizar aquela
tarefa. Era a madrinha quem exigia a água da fonte para beber.
Lembrou-se das
trocas feitas e da possibilidade de desfazê-las. Levando o pote, tomou o
caminho indicado. A casa da velha lá estava, exatamente como dissera, depois da
curva do rio.
- Trouxe-lhe o
pote. Quero de volta o que lhe dei.
- Está certo. Mas
foram três potes e só vejo um. Negócio é negócio. Eu lhe devolverei apenas uma
das trocas. Escolha.
A moça pensou e
concluiu: sentia muita falta da boa visão.
A velha levou-a a
um cômodo de sua casa, onde uma grande quantidade de pequenos baús estavam bem
organizados em cima de prateleiras. Todos levavam uma etiqueta especificando o
conteúdo e o nome do antigo dono.
Nunca ocorrera à
moça que pudesse existir tão esdrúxula coleção. Enquanto procurava sua preciosa
caixinha, a velha explicava:
- Aí estão as
permutas feitas nesses últimos anos. Eu guardo tudo com muito cuidado. Muitos
donos aparecem para resgatá-las.
Quando a moça
lamentou não dispor de algum bem para reaver também seus dentes e seus cabelos,
a velha lhe propôs:
- Devolverei cada
um deles por ano de serviço. Preciso de quem me ajude a cuidar destes baús.
A moça encheu-se de esperança. Recebia as pessoas interessadas em desfazer as
trocas e se alegrava com a felicidade delas ao resgatar o bem de que se haviam
privado.
Eram curiosos e
variados os objetos de destrocas. Alguém chegava trazendo paixão e resgatava a
tranquilidade. Outros traziam moedas de ouro e recuperavam o amor. Um rapaz
chegou devolvendo o sucesso e querendo de volta a perdida paz.
Nessa ocupação a moça aprendeu muito sobre a vida e sobre as pessoas. Todos
tinham uma longa história para contar.
No fim de um ano,
teve seus dentes de volta e depois de mais outro, seus lindos cabelos
encaracolados. Resgatara, principalmente, a alegria de viver. Mesmo cumprido o
tempo combinado, a moça continuou naquela função. Sentia um enorme prazer em
desempenhá-la.
Afinal, a velha,
se era chamada de bruxa, exercia também um papel de fada.
Um dia, parou à
porta daquela casa uma carruagem. Dela desceu um homem ricamente vestido. A
moça recebeu-o e inteirou-se de seu desejo. Viera devolver “glória e poder” e
buscar o que deixara como penhor: um sono tranquilo.
O homem foi
narrando sua vida. Muitos anos se iludira correndo atrás do que pensava ser a
felicidade. Descobrira que nada valia o antigo sossego. A moça, também,
contou-lhe sua história: triste, desprovida de aventura, mas não menos
interessante.
Consideraram que
seus caminhos se cruzavam em boa hora. Poderiam ser felizes juntos. A bruxa, ou
fada, ajudou-a a se decidir.
- Se partir nesta
carruagem irá ao encontro da felicidade que você tanto merece.
A profecia se
cumpriu, o homem era um fidalgo, tanto no sangue quanto no caráter. Eles se
casaram e foram muito felizes.
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