Terminado o Carnaval, eis
que nos encontramos com os seus melancólicos despojos: pelas ruas desertas, os
pavilhões, arquibancadas e passarelas são uns tristes esqueletos de madeira;
oscilam no ar farrapos de ornamentos sem sentido, magros, amarelos e encarnados,
batidos pelo vento, enrodilhados em suas cordas; torres coloridas, como
desmesurados brinquedos, sustentam-se de pé, intrusas, anômalas, entre as
árvores e os postes. Acabou-se o artifício, desmanchou-se a mágica, volta-se à
realidade.
À chamada realidade. Pois,
por detrás disto que aparentamos ser, leva cada um de nós a preocupação de um
desejo oculto, de uma vocação ou de um capricho que apenas o Carnaval permite
que se manifestem com toda a sua força, por um ano inteiro contida.
Somos um povo muito variado e mesmo contraditório: o que para alguns parecerá
defeito é, para outros, encanto. Quem diria que tantas pessoas bem comportadas,
e aparentemente elegantes e finas, alimentam, durante trezentos dias do ano, o
modesto sonho de serem ursos, macacos, onças, gatos e outros bichos? Quem diria
que há tantas vocações para índios e escravas gregas, neste país de letrados e
de liberdade?
Por outro lado, neste chamado país subdesenvolvido, quem poderia imaginar que
há tantos reis e imperadores, princesas das Mil e Uma Noites, soberanos
fantásticos, banhados em esplendores que, se não são propriamente das minas de
Golconda, resultam, afinal, mais caros: pois se as gemas verdadeiras têm valor
por toda a vida, estas, de preço não desprezível, se destinam a durar somente
algumas horas.
Neste país tão avançado e liberal — segundo dizem — há milhares de corações
imperiais, milhares de sonhos profundamente comprimidos mas que explodem, no
Carnaval, com suas anquinhas e casacas, cartolas e coroas, mantos roçagantes
(espanejemos o adjetivo), cetros, luvas e outros acessórios.
Aliás, em matéria de reinados, vamos do Rei do Chumbo ao da Voz, passando pelo
dos Cabritos e dos Parafusos: como se pode ver no catálogo telefônico. Temos
impérios vários, príncipes, imperatrizes, princesas, em etiquetas de roupa e em
rótulos de bebidas. É o nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a
valorização que damos aos nossos próprios méritos...
Mas, agora que o Carnaval passou, que vamos fazer de tantos quilos de miçangas,
de tantos olhos faraônicos, de tantas coroas superpostas, de tantas plumas,
leques, sombrinhas...?
"Ved de quán poco valor
Son las cosas tras que andamos
Y corremos..."
dizia Jorge Manrique. E no século XV! E falando de
coisas de verdade! Mas os homens gostam da ilusão. E já vão preparar o próximo
Carnaval...
Cecília Meireles
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